"Marcio é maravilhoso

Marcio é divino

Marcio é moço fino

Rufino é homem com olhar de menino

Marcio é decidido

Marcio é mestre, brilha no ensino

Marcio é guerreiro...

E nesse Emaranhado Rufiniano, quero me emaranhar."

(Camila Senna)















terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Fazedoras de filhos fracassadas

Gerar: td.1- dar existência ou origem a 2- ser a causa ou a origem; criar, produzir. 3- adquirir existência; nascer.

Kátia estava triste a passar roupa. Pensava na vida como que pisasse em cacos de vidro e fosse obrigada a engolir a seco o choro de dor. Sua fome de vida estava lhe trazendo conseqüências desagradáveis, dolorosas. Mãe de três filhos, cada um de um relacionamento diferente, e já grávida do quarto - após várias aventuras amorosas - voltava a viver sob as hospitalidades da amiga Noêmia que já havia a acolhido antes na gravidez do primeiro filho em sua casa na rua Aguapeí, no bairro Piam, em Belford Roxo. Kátia tinha sido sempre muito afoita em tudo. Muitos homens entre adolescentes, rapazes e até mesmo alguns senhores casados de todas as cores, idade, peso e altura já tinham sentido na pele do corpo inteiro sua ânsia por prazer intenso em fugidas, pegações, ficadas, noitadas e orgias entre uma batida de funk e uma roda de pagode; entre um copo de cerveja e um cálice de vinho; entre um e outro tapinha num cigarrinho de maconha. Mas como tudo tem seu preço quando o cuidado não faz parte da rotina de um ser-humano, ela agora estava ali... Sem trabalho, sem homem. Respirando o que não queria; comendo o que não queria; ouvindo o que não queria.



Noêmia teve que fugir de casa aos dezessete anos por causa da irmã mais velha que queria rasgar seu rosto com gilete, invejosa de sua beleza. Mas conheceu um homem bom e remediado que se casou com ela e lhe deu um nome, um lar e uma filha. Só que em seu casamento faltou o amor e uma pitada de paixão e com isso Noêmia numa bela tarde se descobriu traída pelo marido. Revoltada, se separou pondo-o para fora de casa. Então passou a aturar cobranças não só dos credores - já que o ex não lhe ajudava em um centavo - mas também do atual namorado que exigia uma relação mais séria e da filha que, já adolescente, crescia exigindo a presença do pai dentro de casa. Tudo isso além de criar o filho mais velho de Kátia.



Kátia e Noêmia agora estavam ali, passando roupa naquela casa velha; precisando de uma reforma. Com o telhado quase caindo em suas cabeças. Ouve-se um barulho de portão se abrindo; passos pela varanda. A porta se abre e naquela sala quente entra Verônica, comadre de Noêmia, acompanhada de seu jovem filho Marcelo, afilhado de Noêmia. O papo corre solto e animado até que Verônica fala da ex-cunhada Edilene. Outrora, Noêmia havia tomado conta de Miltinho, filho de Edilene, sobrinho de Verônica.



- Hum! Essa aí se deu bem, minha filha. - Dizia Verônica com sarcasmo e um pinguinho de inveja. Tá com seis filhos. Cada um de um homem diferente. Botou todos eles na justiça e hoje recebe pensão dos seis. Agora tá morando num casarão em Miguel Couto. A mordomia da nega é tanta que os filhos vão levar o café da manhã pra ela na cama. E você pensa que é café e pão com manteiga? Nada disso! É suco, frutas, queijo, presunto, geléia... Tudo na bandeija.



Ao ouvir aquilo, Noêmia deu um tapa no braço de Kátia que da sala a outra quase foi parar na cozinha.



- Tá vendo Kátia? - Perguntava a anfitriã numa fúria intolerante. - Tá vendo, sua fazedora de filho fracassada? Mulher que quer ser piranha tem que ser piranha esperta. Piranha burra fica é pastando pela casa dos outros igual você. Mulher burra tem mais é que tomar no c... pra deixar de ter o grelo no lugar do cérebro.



Marcelo caiu na gargalhada dada a teatralidade histrionicamente humilhadora do esbravejar da madrinha. Constrangida, Verônica começou a beliscar discretamente o filho para que parasse com as risadas.



- Deixa ele rir, Verônica! - Determinou Noêmia ao notar o embaraço da comadre. - Pode rir, Marcelo. Você está na minha casa.



Ao perceber a lágrima invisível que rolava no rosto de Kátia, Marcelo cessou o riso e, sentindo-se culpado, quase despencou da gargalhada escrachadamente histérica para o choro desesperadoramente comovido.



- Bom! Eu já vou indo. - Disse Verônica levantando e puxando Marcelo pelo braço. - Foi só uma visitinha rápida.

Ao sair pelo portão, Verônica assumiu uma aura de tristeza e indignação repreensiva.

- Noêmia não deveria tratar essa moça dessa forma. - Disse ao filho num monólogo inconsciente. - Ela se esquece de tudo que viveu. Ela se esquece que tem uma filha mulher dentro de casa.

Verônica andava pela rua com o olhar parado; misteriosamente distante como o olhar sedutoramente longinquo de uma mulher do Oriente. Marcelo, olhando-a parecia assistir ao filme invisível que passava diante das vistas austeramente melancólicas da mãe através de suas lembranças. Quando ela ajudou Noêmia a fugir da irmã. Neste filme a protagonista era a própria Verônica e as cenas eram dolorosamente cults. Seu pai proibindo-a de continuar seus estudos, ainda menina, para ajudar a mãe a cuidar da casa e tomar conta dos irmãos menores, já que ela era a mais velha de todos. As madrugadas em claro tendo que embalar o sono dos irmãos e tendo que esquentar o leite já que a mãe tinha que atender aos apelos grosseiramente amorosos do pai na fabricação de mais irmãozinhos. Os gritos dos irmãos e o roncar da cama dos pais eram a trilha sonora da infância daquela mulher; somado ao medo de dormir no meio da tarefa e ser despertada por uma surra de moer os ossos.

Na pausa para o intervalo, em frente à banca de jornal, lê na capa de revista de celebridades sobre a famosa socialite da zona sul que acordou numa luxuosíssima cobertura em París ao som de uma orquestra de violinos na manhã seguinte à noite em que disse ao marido, um poderoso empresário, que estava grávida. Isso remeteu-a há alguns anos atrás, num quartinho imundo e abafado do bairro Areia Branca, quando o até então namorado Joaquim arremessou um punhado de dinheiro em sua face para que fizesse o aborto ao saber de sua gravidez; e ela uma vez desobedecendo-o e tendo o filho, tendo que abandonar o emprego de enfermeira dois anos depois para se dedicar integralmente ao pequeno Marcelo, mediante as ameaças do já marido Joaquim de abandonar o lar.

A capa da revista remeteu-a também à casa dos pais de onde foi expulsa aos bofetões pelo pai que não queria uma filha mãe solteira dentro de casa. Ela tendo que se abrigar na casa da amiga Agripina, também grávida, e que mais tarde seria a mãe de leite de Marcelo. É. Se Eva soubesse que a conta que teria que pagar por ter dado o maldito fruto para Adão comer fosse tão alta, teria ela comido a própria serpente assada.

Quando passou em frente à padaria lembrou que tinha que comprar pão. Quando chegou no guichê uma voz melancolicamente doce chegou em seu ouvido como o canto de um anjo:

- Moça, compra uns doce pra me ajudá a dá de comer pros meus fio. É baratinho!!!

Uma bela, mas suja, esfarrapada e maltrapilha jovem negra lhe oferecia uma caixa de bananadas. Duas crianças pequenas e um bebê no seu colo choravam ensurdecedoramente de fome. Os olhos da jovem e das crianças inchados pela violência, desamparo e desesperança eram vários punhais pontiagudos cravados no peito de Verônica.

Creative Commons License
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.

segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Janaína

Interagir: 1- agir afetando e sendo afetado por outro(s). 2- ter diálogo, comunicação(com outro) em dada situação; relacionar-se.

Há anos eu não via Janaína. Ainda me lembrava muito bem daquela menina morena, alta, forte, tímida, triste, rechonchuda, complexada em seus óculos fundo de garrafa. Mas qual não foi minha surpresa quando vi aquele mulherão; charmosa; sexy, um olhar lascivo. Havia operado os olhos, casado, tido filho, descasado, casado novamente. O tempo havia lhe presenteado com uma desenvoltura, articulação e despreendimento de causar inveja a mais competente das relações públicas. Tinha acabado de sair de seu escritório. Tinha se tornado uma advogada. Trocamos e-mail, orkut, msn.

Minha mãe havia colocado uma causa na justiça envolvendo uma importante operadora de comunicação que havia cobrado taxas a mais de pagamento. Batido o martelo, decidiu-se que minha mãe teria direito apenas ao valor já gasto com as taxas pagas a mais. Ficamos indignados: "Ora! E os danos morais?" Decidi me esclarecer com minha amiga advogada Janaína pelo msn. Uma vez adicionados, aceitos e virtualmente reencontrados um ao outro, começamos. Na tela do computador, sua foto com um suave sorriso sarcástico e o mesmo olhar lascivo dava um clima sofisticada e discretamente sensual e brejeiro.

Eu: Minha amiga. Preciso de sua ajuda.

Janaína: Pode tc, meu querido.

Expliquei a situação.

Janaína: Eu vou falar com ela quando ela sair do banho.

Eu (assustado): Mas como? Se vc não é ela, vc é quem?

Janaína: Eu sou o marido dela.

Eu: Desculpe.

Janaína: Tudo bem.

Eu: O que vc faz da vida?

Ele me respondeu que era promotor de vendas justamente da operadora que estávamos em questão, em causa na justiça.

Janaína: Eu tenho alguns versinhos seus aqui comigo.

Eu: Como? Versinhos meus?

Janaína: Versinhos que vc me deu pra digitar na época da escola.

Eu: É vc Janaína?

Janaína: Sim, sou. Acabei de sair do banho.

Eu: Ah!

Janaína: Sabe que nunca fui a mesma desde aquele dia que vc desmanchou comigo pelo telefone.

Eu: Mas isso foi na época da escola. Eu já nem me lembrava mais disso.

Janaína: Eu quis te matar.

Eu: Que é isso, Janaína?! Seu marido pode ler isso.

Janaína: Ele foi na casa da madrinha com um amigo.

Eu: Nós nunca daríamos certo.

Janaína: Porque a gente não dá uma saída pra tomar umas cervejas num bar?

Eu: Sim. Vamos sair pra tomar cerveja num bar qualquer da cidade. Que dia fica bom pra vc?

Janaína: Nenhum. Eu não bebo.

Eu: Vc tá brincando comigo, Janaína?

Janaína: A Janaína foi beber água. Aqui é o marido dela.

Cansei-me daquilo. Desliguei o computador. Na tela o mesmo reflexo do sorriso levemente debochado e do olhar lascivo.

Creative Commons License
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.

A Movimentanormalidade

Paranormal: 1- não explicavel cientificamente; sobrenatural. 2- quem tem supostos poderes extra-sensoriais.

Telúrio Nepomuceno começou a se interessar pelas artes plásticas ainda menino Na verdade as formas sempre lhe assombravam e seduziam desde quando se entendia por gente. Era ele um constante e ambulante assombro. Também, as coisas sempre conspiraram para que ele se surpreendesse assustadoramente com tudo.


Quando tinha dois anos estava no colo de sua mãe, no bairro de Areia Branca, em Belford Roxo, esperando o ônibus em frente ao bar, quando presenciou uma violenta discussão entre um bêbado e o dono do bar. O dono do bar mandou o bêbado para um certo lugar este o respondeu com uma navalhada no rosto. Telúrio só se lembra da sensação gostosa de querer lamber aquele suco de groselha que escoria do rosto do dono do bar. Mas sua mãe fugira dali apavorada com a cena.


Desde pequeno as formas causavam sensações deliciosas em Telúrio. Assim como quando passeava por Nova Iguaçu e via as obras em construção, os pedreiros trabalhando, os transeuntes passando e isso o remetia inconscientemente a tempos idos, quando ainda não existia quase nada e os artesões levantavam templos e palácios; os camponeses aravam a terra e a defendiam da seca e os deuses passeavam entre os humanos. Os desenhos animados, as figuras lhe acendiam uma certeza incrível de também ser figura. Ainda mais quando seus sentimentos correspondiam a sentimentos de personagens de ficção. E a descoberta do primeiro amigo; da primeira namoradinha; do primeiro choque.


Primeiro choque?


Sim primeiro choque humanamente elétrico. Ele tinha treze anos. Estava brincando de esconde-esconde e ouviu sem querer de uma vizinha:


- Coitadinho do Telurinho. Mal sabe ele que é filho do próprio avô. O finado Aurélio, que o diabo o tenha num péssimo lugar, aquele cão danado, abusava da pobrezinha da própria filha.


Foi aí que Telúrio descobriu que a pior e maior eletricidade é aquela que existe dentro do próprio corpo. Ele saiu do esconderijo, expôs a sua figura e seu amigo bateu no poste três vezes.


- Agora ta contigo, Telúrio!


Ele não se importou, pois de agora em diante sempre estaria com ele. Não só nos esconde-escondes, mas principalmente nos revela-revelas da vida.


As formas de tudo tomavam uma outra perspectiva para Telurinho. É como se formasse um mosaico além de tudo que lhe rodeava e ele visse tudo ao mesmo tempo. Era algo mais incrível do que a paranormalidade. Era a movimentanormalidade.


A movimentanormalidade era a verdadeira desobediência às convenções, pois rompia com todos os limites das formas sensíveis, sem precisar de nenhuma droga. Era a certeza, a descoberta, a consciência de que nada é lindo ou horroroso; perfeito ou defeituoso; virtuoso ou promíscuo que desencadeava sua manifestação. Isso fazia Telúrio olhar para as loja, os comércios, as casas e saber o que se passava lá dentro sem precisar entrar. E assim era com as pessoas. E assim ele descobriu os homens que pensavam dominar suas mulheres, mas eram por elas manipulados;descobriu as mulheres que pensavam seduzir seus homens, mas eram traídas e abandonadas por elas mesmas; descobria as crianças que provocavam seus próprios abusos para destruir e reinar; descobria os falsos idosos que fingiam ter pena de si próprios para iludir e sugar energias numa vampirística hipnose. E então ele descobriu que as formas internas, muito mais que abstratas e agressivas, eram muito mais poderosas e lhe devoravam num ritual pseudo-antropofágico.


Telúrio então cresceu acariciando e apalpando tudo que lhe era apresentado. Bichos, plantas, objetos, até pessoas. Era muito mal interpretado. Muitas vezes já foi até agredido fisicamente, pois a movimentanormalidade provoca impulsos contínuos e intensos que não cabem na razão humana.


Ele chegava no quintal de sua casa depois da chuva e pegava o barro molhado e amassava e moldava. Fazia também assim com jornais e revistas velhos. Formava pessoas, bichos, objetos, universos. Chegou às suas próprias conclusões de tudo e do nada com a movimentanormalidade. Ousou pensar tudo a partir de si mesmo.


Creative Commons License
Esta obra está licenciada sob uma Licença Creative Commons.